Anti-racismo ou cloroquina? - as estranhas prioridades da "classe médica"

    
PRIORIDADES


                 Um dos vários fenômenos observáveis por profissionais da saúde durante a pandemia da covid-19 foi o grande aumento de discussão de evidências em seus círculos profissionais. Todos nós, mais ou menos ligados à pesquisa científica, mais ou menos interessados por leituras metodológicas, tivemos o prazer (?) de receber uma grande quantidade de artigos afirmando uma considerável quantidade de coisas diferentes: cloroquina faz bem, cloroquina faz mal, remdesivir faz bem, corticoide faz bem, mas tem hora que faz mal... há até aqueles mais heterodoxos - digamos assim - que, no privado, arriscam compartilhar eventuais benefícios do alho e do ozônio no tratamento da nova infecção viral.

A discussão extrapolou os limites da "classe médica" e atingiu os grandes meios de comunicação. Em reportagem recente, o Estadão debateu com vários especialistas possíveis motivos e soluções para a falta de pensamento crítico em medicina, incluindo na lista de possíveis problemas o currículo discente. Deveriam os alunos aprender mais Medicina Baseada em Evidências ao longo da faculdade? 

Para além da importante discussão e da interessante colocação do prof. Luis Correia, único entrevistado a ligar, na reportagem, os rumos da ciência médica aos rumos da sociedade, gostaria de trazer a debate um tema que me pareceu muito pouco discutido pela "classe", seja em seus círculos mais cientificamente especializados ou em seus representantes mais diretamente assistenciais. Enquanto se debatia, exaustivamente, estudos sobre a cloroquina ou outros fármacos, outro aspecto muito mais importante da pandemia estava passando despercebido.

Conforme boletins socioepidemiológicos de entidades de pesquisa (Fiocruz) e de secretarias estaduais de saúde (SMS-SP) apareciam, um dado se repetia, consistentemente: a probabilidade de um negro morrer de COVID-19 sempre se mostrava maior que a de um branco. A nota técnica do Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde (NOIS/PUC-Rio) e um artigo do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros (NEAB/UFES) também seguiam a mesma linha. 

O observador mais atento pode fazer objeções: tanto a nota técnica do NOIS quanto o boletim da Fiocruz utilizam a taxa de letalidade como indicador, variável sujeita à superestimação em caso de subnotificação de casos; não seria possível por aí comprovar que a situação de vulnerabilidade social vivida pela população negra (e é possível adicionar: periférica e pobre) estaria se manifestando numa maior probabilidade de morrer por ser negro. 

O interlocutor ainda mais refinado afirmaria que todos esses estudos trabalham com variáveis ecológicas, estando, portanto, sujeitos ao famigerado viés de agregação (a falácia ecológica) (1). Nesse sentido, estudos ecológicos não seriam os adequados para estabelecer nexos de causalidade. Para isso, seriam necessários trabalhos que realizassem inferências ao nível individual, preferencialmente prospectivos. 

Seria possível tentar responder, por exemplo, mostrando que o artigo do NEAB/UFES demonstrava índices semelhantes de infecção entre negros e brancos, o que tornaria difícil reduzir à subnotificação a maior probabilidade de negros morrerem; também seria viável debater a fragilidade da visão que compreende a inferência individual como método privilegiado para estabelecer causalidade... Deixaremos esta última discussão para próximas entradas no blog.

A inquietação de constatar a possibilidade de estarmos, enquanto categoria profissional, dando pouquíssima atenção a um fator de risco cuja correção poderia ter enorme impacto me fez abrir o site do famoso New England Journal of Medicine (NEJM). Dentre os artigos mais lidos e mais enviados por e-mail da revista (vale a pena ressaltar que o NEJM disponibiliza gratuitamente todos seus artigos relativos à pandemia), pelo menos dois enquadram-se na "polêmica da cloroquina"; dentre os mais lidos, também podemos ver um sobre o remdesivir e o famoso estudo RECOVERY sobre a dexametasona. 

Entretanto, uma busca um pouco mais aprofundada no site da revista nos presenteia com achados mais interessantes: dois instigantes artigos da seção "Perspective" (aqui e aqui) expõem opiniões de autores sobre o tema e merecem a leitura. Mas um artigo original, uma coorte retrospectiva que estudou pacientes de um sistema de saúde privado na Louisiana, foi que mais chamou atenção, por seu conteúdo e por sua pouca notoriedade pública. O artigo, que pretendia comparar as características clínicas e o desfecho de pacientes negros e de pacientes brancos com COVID-19, atingiu um hazard ratio em torno de 2 para hospitalização, mas ser negro não foi um fator de risco independente para mortalidade intra-hospitalar. 

Esse trabalho apresenta várias limitações (que não serão exploradas agora). Mais notável do que elas é a aparente falácia ecológica exposta por seus resultados: ao contrário do que dizem os estudos de informações no nível agregado, a raça não é fator de risco independente para mortalidade por COVID-19, somente para hospitalização (o que mereceria outro comentário, mas também guardemo-lo para outro momento). Logo, ser negro não implicaria, em si, maior mortalidade; esta seria influenciada por outros fatores como idade avançada, chegada ao hospital com frequência respiratória elevada, plaquetopenia, linfocitopenia, entre outros. 

É justamente nesse ponto que reside o que de mais valioso há na análise do trabalho. Realmente, ser negro, em si, não implicaria mais mortalidade pelo simples fato de que corações de pessoas negras batem da mesma forma que corações de pessoas brancas, cérebros de pessoas negras têm o mesmo formato e a mesma função de cérebros de pessoas brancas, fígados de pessoas negras produzem as mesmas enzimas que fígados de pessoas brancas. É o princípio da raridade da interação em atividade: a existência de raças não se justifica biologicamente, logo, muito provavelmente, não haverá grande variação de efeito dos tratamentos em função dela. 

Contudo, na população do estudo, havia maior incidência de COVID-19 e maior prevalência de diabéticos, pacientes com doença renal crônica e portadores de hipertensão arterial sistêmica entre os negros. Estes também foram admitidos ao hospital com creatinina e mediadores inflamatórios mais elevados que os brancos. 

Portanto, poderíamos propor uma explicação que daria coesão aos dados ecológicos e ao estudo observacional apresentado. Ser negro, realmente, não implica, em si, maior mortalidade. Mas ser negro em uma sociedade racista, que os reserva os piores postos de trabalho, as piores condições de alimentação, de moradia, de sobrevivência em meio à pandemia, de consumo, de saneamento, de educação, de acesso ao sistema de saúde, ou seja, que os adoece cronicamente, enfim, ser negro em um modo de produção racista é um fator de risco que aumenta, em nível individual, a chance de hospitalização, a qual, em nível agregado, denota maior chance de mortalidade. Decorre imediatamente disso que medidas de correção das desigualdades causadas pelo racismo estrutural muito provavelmente terão impacto relevante na mortalidade pela doença. 

Se os dados apresentados são incapazes de provar a explicação hipotética que apresentei acima, certamente, eles conferem a ela relevante probabilidade. Ou seja, sua probabilidade pré-teste, a ser elevada ou reduzida em próximos estudos, parece estar longe de descartável. É motivo de enorme curiosidade por que, levando em conta toda a argumentação, o debate científico sobre racismo seja tão raro entre médicos e médicas. 

Por que estudos com resultados muito mais suspeitos (como, por exemplo, o estudo observacional lançado e retirado do ar pela Lancet) foram exaustivamente compartilhados? Uma busca nada sistemática como a nossa foi capaz de encontrar vários estudos ecológicos e um estudo observacional razoável sobre um fator de risco possível, sem precisar recorrer a estudos in vitro ou a ensaios clínicos de metodologia bastante questionável para embasar nossas suposições. Cloroquina e ivermectina têm probabilidade pré-teste de modificar o curso da COVID-19 muito menores que a luta anti-racista.

É bem conhecido o fato de que as intervenções médicas, atualmente, têm tamanho moderado de efeito, no geral, menor que 50% - como o referido prof. Luis comenta em episódio recente de seu podcast. Por que insistimos em discutir tratamentos de efeito provavelmente muito limitado baseados em evidências de péssima qualidade em vez de tentar corrigir fatores de risco cujo impacto coletivo pode ser muito maior? Faz sentido debater a importância do controle de doenças crônicas sem levar em conta o racismo e a desigualdade como seus potenciais geradores? 

Podemos estar equivocados. Não cabe a nós a resposta a muitas dessas perguntas, apesar de termos pitacos. Buscamos, somente, tentar dar algumas pistas de que o paradigma médico-científico atual (2) justificaria (e muito) uma maior discussão sobre racismo e sociedade em nossa categoria profissional. O que se vê, porém, é a ignorância proposital de médicos (majoritariamente brancos, diga-se) sobre o tema. Se os motivos para isso não são, como mostramos, científicos, seriam eles... racistas?





Notas

(1) Um famoso exemplo da falácia ecológica é o caso da correlação, encontrada no século XIX na Prússia, entre número de indivíduos protestantes e taxa de suicídio em uma determinada localidade - exemplo que ouvi em aula e fui ler anos depois em livros de epidemiologia. Quanto mais protestantes havia em uma área, mais suicídios. Afirmar, a partir disso, que ser protestante é um fator de risco para o cometimento de suicídio pode ser um erro: nas regiões com alta concentração de predomínio da população protestante, fiéis de outras denominações poderiam estar sofrendo perseguição ou estar isolados, cometendo mais suicídios...

(2) Sobre o qual teremos outras oportunidades de opinar neste blog sem termos sido questionados...

Comentários

  1. Há tempos n leio texto de tão alto nível de consciência, reflexão e abordagem escrita. Parabéns pelo blog

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    1. Ana, pedimos desculpa por não ter visto sua mensagem antes! Agradecemos a avaliação <3 Infelizmente, estamos com problemas para aparecer no Google, portanto, se achar que vale, passe nosso blog e nossas redes (@medpeloavesso) para todos que possam se interessar!! Uma boa noite

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