Mamografia de rastreio e redução de mortes - não houve benefício (TRADUÇÃO)
Há mais de 30 anos, outubro é o mês da conscientização sobre o câncer de mama (nos EUA), mas conhecido em nossa terra como "outubro rosa". Para tentar deixar uma contribuição sobre o tema, decidi traduzir para a nossa língua portuguesa (tradução livre, sem nenhuma pretensão rigor teórico) a revisão feita pelo The NNT Group sobre os benefícios contestáveis do rastreio mamográfico do câncer de mama.
A imagem acima, apesar de ser de uma matéria do The New York Times, ilustra bem o conteúdo do texto. Como não-especialista e reconhecendo as inúmeras complexidades da área, reproduzo o parecer do grupo de especialistas em evidências, o qual serve, no mínimo, para pensarmos e repensarmos questões que vão muito além das fitas, camisas cor-de-rosa e campanhas de marketing. Estamos a par de que a recomendação de entidades respeitáveis (como o INCA, o Ministério da Saúde, a USPTF, ACOG - com suas diferenças) é optar pelo rastreio, especialmente na faixa etária entre 50 e 70 anos. Nosso objetivo não é ignorar as diretrizes, mas refletir criticamente seus resultados e, a partir daí, pensar uma prática clínica coerente.
O texto original pode ser acessado neste link. O que se encontrar entre colchetes foi um complemento realizado por mim. O grifo na palavra "todos" (1a linha do 2o parágrafo da discussão) também é de minha responsabilidade. Sem mais delongas...
"Desfechos de eficácia: mortalidade; mortalidade por câncer de mama.
Desfechos de dano: procedimentos cirúrgicos desnecessários, falsos-positivos, sobrediagnóstico que leva a tratamento desnecessário
Discussão: a mamografia de rastreio (mamografia em mulheres sem sinais e sintomas de possível câncer de mama) foi estudada em grandes ensaios randomizados de, aproximadamente, meio milhão de mulheres. A base teórica para a intervenção é boa. Presume-se que a intervenção terapêutica em um momento em que o câncer é visível na mamografia - mas ainda não palpável no exame físico - vá, para um pequeno número [de mulheres] resultar em terapias precoces, que vão salvar vidas. A taxa de mortalidade total, entretanto, não melhorou nos grupos designados, nos estudos, para realizar mamografias regularmente. Ao agregar os dados daqueles ensaios clínicos corretamente randomizados (resultando em grupos balanceados), também não houve redução identificável nas mortes por câncer de mama.
O resultado estatístico é levemente diferente quando se aceita todos os dados dos ensaios clínicos, não se restringindo apenas àqueles adequadamente randomizados. Enquanto a mortalidade total continua inalterada, nessa análise, a mortalidade por câncer de mama é reduzida em, aproximadamente 15%. Se estiver correto, isso representaria um NNT de aproximadamente 2000. Contudo, a mortalidade por câncer de mama não é tão importante quanto a mortalidade geral, porque indivíduos que decidam realizar o rastreio mamográfico vão, tipicamente, querer evitar a morte, não evitar a morte por uma única causa. A falta de benefício geral na mortalidade com um potencialmente pequeno benefício notado na mortalidade por câncer de mama sugere que a mamografia provavelmente é capaz de tirar tantas vidas quanto estiver salvando.
Esse é um ponto importante, apesar de pouco discutido, na tradução de evidências de ensaios clínicos de rastreio de câncer. Sabe-se que o sobrediagnóstico (tratamento de cânceres que não teriam sido ameaças à vida) e altas taxas de falsos-positivos (diagnósticos errados) levam a danos médicos e a cirurgias, quimioterapia e radiação desnecessárias. Presume-se que um pequeno número desses indivíduos também morra por terapias agressivas como quimioterapia e grandes cirurgias e , dado a pequena, apesar de disputada, margem de benefício sugerida pela análise acima, parece provável que, se existe um benefício no rastreio mamográfico, ele é contrabalanceado por danos fatais causados por falsos-positivos e pelo sobrediagnóstico. Se o rastreio reduz a mortalidade por uma causa, mas não altera a mortalidade geral, implica-se, matematicamente, que existe um aumento em outra causa de morte que esteja contrapondo a redução de mortalidade por câncer de mama. Infelizmente, porque os ensaios clínicos são simplesmente grandes demais para seguir a causa de cada óbito, é geralmente difícil dizer com precisão onde esse aumento ocorre.
Os danos causados pelo rastreio do câncer de mama são discutidos extensamente na revisão da Cochrane e em análises mais recentes. Esses incluem falsos positivos que resultam em procedimentos cirúrgicos e estresse emocional. Adicionalmente, apesar da falta de benefício identificável no rastreio mamográfico, as mulheres designadas para grupos que realizavam mamografias tinham 20% mais chance de passar por mastectomias e 30% mais chances de passar por cirurgias no geral. Por fim, se é verdadeiro que as mortes por câncer de mama são reduzidas, tem sido estimado que, para cada paciente que deixa de morrer por câncer de mama, 10 a 20 mulheres são tratadas desnecessariamente como pacientes com câncer, tipicamente recebendo cirurgia, radiação e quimioterapia. Essa estimativa adicional de iatrogenia não está representada nas estatísticas de NNT listadas acima.
Advertências: o tema é complexo e difícil de estudar até mesmo nos ensaios clínicos randomizados, em que alguns pacientes designados a realizar mamografias não aderem aos planos de rastreio, e outros designados a não realizar as mamografias são rastreados (ou seja, "contaminação"). Além disso, os estudos são antigos, e houve melhorias significativas nas terapias de câncer de mama desde a sua realização. Portanto, esses dados são altamente imperfeitos. Isso levou vários pesquisadores a examinar dados observacionais, dos quis inferências sobre causalidade são menos válidas, mas que podem ser úteis em explicar algumas tendências epidemiológicas que não mostram redução significativa nas mortes por câncer de mama desde o advento do rastreio mamográfico. Mais recentemente, um estudo observacional sobre os efeitos do rastreio nos Estados Unidos nos últimos trinta anos sugeriu que 50% dos cânceres detectados no rastreio são sobrediagnósticos, e que, enquanto o número de diagnósticos de câncer de mama em estágio inicial dobrou, a quantidade de pessoas que desenvolvem câncer de mama avançado hoje é próxima àquela da época em que a mamografia não era de uso tão disseminado.
É importante notar que o rastreio mamográfico salva algumas vidas individuais no sentido de que é quase certo que existam mulheres cujo câncer de mama é susceptível ao tratamento curativo no momento em que é identificado pela mamografia, mas que não seria susceptível à terapia quando ele fosse identificado pelo médico no exame clínico ou no autoexame. Todavia, o número de cânceres para os quais a janela terapêutica existe somente nesse intervalo de tempo provavelmente é pequeno e, embora se salvem vidas dessa forma, um número igual de vidas parece ser perdido em função da radiação das mamografias, ou do sobrediagnóstico, ou dos falsos-positivos ou de uma combinação destes três. O NNT que calculamos aqui é desenhado para ser uma ferramenta para aqueles que estão tentando tomar decisões sobre as intevernções em saúde e, no agregado, as melhores evidências disponíveis sugerem que não há benefício líquido no rastreio mamográfico. Isso não deve ser compreendido como a negação de que alguns indivíduos serão salvos - é provável que sejam -, mas um número igual de indivíduos parece perder suas vidas graças à mamografia e não há como saber previamente em qual grupo alguém vai cair.
Dois dados recentes merecem ser mencionados. O Reino Unido formou uma comissão independente de revisão após vozes dissonantes se tornaram mais altas com o propósito de criar melhores materiais educacionais e com o propósito de tomada compartilhada de decisões sobre os riscos e os benefícios do rastreio. Infelizmente, a revisão concluiu que os ensaios clínicos sobre o tema tinha insuficiente poder estatístico para detectar um impacto na mortalidade por todas as causas como desfecho primário. Eles concluíram uma redução de 20% e usaram isso em sua discussão de riscos e benefícios. Como notamos acima, mortalidade por causa específica é tanto instável cientificamente (reversões de conclusão são comuns quando se leva em consideração a mortalidade por todas as causas) quanto centrada na doença, em vez de centrada no paciente (pacientes preferem não morrer, no geral). Logo, ou o rastreio mamográfico não salva vidas ou nós temos dados inadequados para dizer se ele salva ou se não salva. De um jeito ou de outro, em nenhum dos casos pode-se alegar benefício científico.
Uma resposta cuidadosa e centrada no paciente à revisão do Reino Unido nos dá uma breve e inteligente análise de dados sugerindo que o rastreio mamográfico está tirando significativamente mais vidas do que está salvando. Essa última revisão leva em consideração a melhora no tratamento dos cânceres e provavelmente sobrediagnóstico (usando dados dos Estados Unidos, publicados após a revisão do Reino Unido) e concluiu que sequelas de longo e de curto prazo da radioterapia no tratamento do câncer está tirando duas a três vidas por cada uma salva por uma mamografia. Nós, apesar disso, optamos por manter a classificação do rastreio mamográfico como vermelha (dados não sugerem benefício) em vez de mudá-la para preta (dados sugerem malefício > benefício) visto que este trabalho mais recente apresenta somente uma boa projeção sobre o impacto atual.
Como nota final, é importante estar atentos para o fato de que a justificativa primária para a falência do rastreio mamográfico é a incapacidade atual de determinar quais células cancerígenas representam uma verdadeira ameaça para seu hospedeiro. Se isso pudesse ser determinado de forma bem-sucedida, então qualquer teste de rastreio como a mamografia seria um sucesso. Caso a ciência e a tecnologia avancesse ao ponto de tornar a estimativa prognóstica baseada em material clínico (células de biópsia ou características mamográficas ou características biológicas individuais) esmagadoramente precisa, programas de detecção precoce de todos os tipos seriam muito mais prováveis de gerar vidas salvas como resultado.
Autor: David Newman, MD
Publicado/Atualizado: 6 de outubro de 2010"
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